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sexta-feira, abril 05, 2019

Sabores da noite passada

Meu hálito nesta manhã me lembra um pouco das alegrias e sabores da noite passada. Bebemos, rimos, cantamos e, sinceramente não tenho certeza, mas acho que também usamos alguma coisa levemente ilegal para adoçar ainda mais a madrugada.

Começamos cedo, com um happy hour que buscava espantar as dores de um dia pesado de trabalho para ambos. Eu não te conhecia. Não, eu já havia te visto uma ou duas vezes por aí. Sim, isso mesmo. Os amigos nos apresentaram formalmente, começamos a falar de filmes, livros, política e jardinagem. Chope vai, tira-gosto vem, desafinamos algumas músicas no karaokê, discordamos sobre os rumos da economia, sorrimos muito e, se não me engana a memória, trocamos uns beijos no estacionamento do bar. 

Quando a mesa começou a ficar vazia e iniciativas mais decisivas passaram a ser exigidas pelo horário, te fiz uma pergunta fundamental para definir os rumos daquela noite: 

- Dorme comigo? 

Então você abriu um sorriso, encostou tua boca em minha orelha e me disse, antes de mordê-la: 

- Claro. Só estava esperando o convite.  

Ainda bebemos mais um pouco e trocamos ideias sobre o futuro da nação antes de chegar em casa. Por sorte, meu companheiro de aluguel havia encontrado lugar melhor para passar a noite e ficamos à vontade para passear com os nossos corpos sem roupa da sala até o quarto. Li com a língua cada uma das tatuagens e sinais da tua pele enquanto lembrava de um som que ouvia quando era moleque: 

“Y yo que nunca tuve
Más religión que un cuerpo de mujer
Del cuello de una nube
Aquella madrugada me colgué”

Pendurado em tuas nuvens estava quando você falou que provavelmente não amanhecerias ao meu lado. Algo como um compromisso logo cedo com o trabalho, amigos, namorado, não sei... Confesso que naquele momento eu só pensava em sentir o teu gosto e isso afetava o meu raciocínio. O depois ficará para depois, pensei.

Amanhece, abro os olhos e fico olhando para o teto do quarto, cantarolando em minha mente a mesma música da madrugada. Só me acompanham teu cheiro grudado em minhas mãos e uma mensagem no celular, na qual dizes ter gostado da noite e prometes um dia talvez repeti-la. 

Enquanto tomo uma xícara de café preto, sorrio e penso em como promessas de noites boas são fundamentais para aguentar os dias cheios de rotina.

sexta-feira, julho 16, 2004

Salsa e ciúmes


 
Uma da manhã. A pista está cheia na boate mais animada da cidade. É sempre assim na quinta-feira, quando é noite de salsa, merengue e caribe. Suor escorre da maioria dos rostos. Homens e mulheres, mulheres e homens, todos exibem-se para todos.

No balcão do bar, Ricardo e Drica discutem. Ele está cansado e ela quer mais. Ele quer ir embora para dormir, acordar cedo e ir trabalhar. Para ela, que também trabalha daqui a pouco, o final de semana o momento ideal para descansar. "A noite não espera para acabar e o trabalho sempre estará lá quando o procures", afirma a jovem.

Do outro lado da pista, Alberto mexe-se desajeitadamente ao som do mais novo sucesso de  Gilberto Santa Rosa. Alberto não dança uma vírgula, mas gosta de freqüentar a boate para ver as apresentações dos bailarinos profissionais à meia-noite. Depois, sempre fica mais um pouco para tentar descobrir alguma mulher sem par, coisa das mais difíceis na boate, e sem esperança de encontrar alguém melhor que Alberto para dançar.

Mas hoje a noite parece ser muito ruim. Nem sequer Ana Rita, sua amiga e eterna salvação na dança apareceu. Deve ser por conta do namorado novo, pensa o aprendiz de dançarino enquanto se dirige ao bar para comprar uma bebida e ir embora.

Lá, surpreende-se ao encontrar Ricardo e Drica, seus monitores na escola de dança que começou a freqüentar na terça-feira passada. "Olá, como vão, gostei do espetáculo. Um dia chego lá", brinca. Percebe que o clima não é dos melhores, pede sua bebida e quando vai dizer adeus, estendendo a mão para o casal, Drica aproveita a deixa e o puxa para dançar. A bebida Drica põe na mão do atônito Ricardo enquanto o olha desafiadora.

Na pista cheia de bons dançarinos, Alberto usa tudo o que aprendeu na única aula de salsa e merengue que teve na vida. Drica diverte-se com o esforço e ri, linda, divinamente, enquanto seus cabelos lisos e negros grudam na pele morena e seus olhos parecem refletir toda a luz da boate. 

Mas uma noite assim não pode terminar bem. Ricardo, o sonolento bailarino que durante o dia é bancário, também acumula conhecimentos de boxe para ocasiões como esta. Na sua opinião, Alberto merece uma lição não de salsa e sim de ringue. Começa a atravessar a pista para iniciar a aula enquanto, alheio ao risco que corre, o futuro aprendiz de luta empolga­-se com o bailado de Drica e começa a apertá-no ritmo certo, puxando para um lado e para outro, do jeitinho que ela ensinou. 

A três passos do casal, o celular de Ricardo, o violento, toca. É a mãe de sua namorada, perguntando a que horas vão chegar. Afinal, ela tem de ir trabalhar cedo. "É tua mãe", diz, cavernoso. "Oi, mãe. Meu celular? Acho que ficou dentro do carro. Está bem, sei que é tarde. Vou agora. Beijos. Bem, Alberto, valeu pela dança. A gente se vê na próxima aula. E continua praticando. Você esteve ótimo", fala a moça para o rapaz, antes de beijar-lhe a face, pegar a mão do namorado e caminhar para a porta da boate.

Na pista, Alberto, só e ligeiramente menos desajeitado, continua balançando-se, desta vez ao  som de um antigo sucesso de Tito Rojas. "A noite não fui tão ruim assim", acredita, "e ainda bem que o professor não levou a mal nem ficou com ciúme. Ele é gente boa".