Ah, aqui a ficha do livro, dificílimo de ser encontrado: A mulher do garimpo – O Romance do Extremo Sertão Norte do Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1976.
A cópia de onde tirei o texto pertence ao escritor Adair Santos, que foi amigo de D. Nenê e é avô do indiozinho que manda na minha maloca. O material ajuda a montar o cenário da pequenina e modorrenta Boa Vista daquele tempo. Boa leitura e se for copiar não esquece do crédito de D. Nenê.
BOA VISTA DO RIO BRANCO
I
Boa Vista do Rio Branco, pouco acima da linha do Equador que ladeava a formosa Serra Grande, perto de Santa Maria do Boiaçu, ficava na margem direita do alto-Rio Branco e era cercada pelas Serras Pelada, Grande, Malacacheta, Moça e Murupu. Distava de Manaus quinhentas e quarenta e seis milhas.
Vilarejo até 1926, pequenina e triste, possuía na ocasião regular número de habitantes.
A primeira penetração do Vale se havia dado entre 1500 e 1700, quando o Branco tinha o nome de Paraviana ou Kuluêne, por causa da tribo dos Paravianas que desceu o Uraricoera e veio se instalar perto de Boa Vista.
Em 1725 Frei Salvador, monge carmelita, a fim de concentrar os índios para pacificá-los, fundou a Freguesia de Nossa Senhora do Carmo do Rio Branco, hoje cidade de Boa Vista, construindo a Igrejinha local onde se achava agora a Matriz, perto do rio.
Mais tarde, em 1774, Pereira Caldas, Governador do Grão-Pará, mandou construir, na boca do Itacutu, o Forte de São Joaquim, ampliando o povoamento do Vale e fazendo expulsar os espanhóis da região. Depois, em 1766, houve um conflito com os holandeses, sendo o famoso Ajuricaba, acusado de trair a Pátria.
Em 1789, o Coronel Lobo D’Almada, então Governador da Capitania de São José do Rio Negro, trouxe as primeiras reses para os lavrados do Rio Branco, fundando a fazenda de São Bento, no Uraricoera, perto da embocadura do Itacutu, formador do Rio Branco.
Em 1839 deu-se a invasão dos ingleses, quando já o Amazonas era Província. Atrevidamente os orgulhosos invasores ensinaram a língua inglesa ao gentio, incutindo-lhe que o Rio Branco pertencia à Inglaterra. Frei José dos Inocentes foi encarregado de expulsá-los, resultando daí a Questão de Limites com a Guiana Inglesa, possessão da Inglaterra, que durou anos e anos, sendo eles afinal expulsos do Forte pelo Alferes Paulo Saldanha.
Em julho de 1890, a sede da Freguesia, possuindo duzentos habitantes, foi elevada à categoria de Município, com o nome de Boa Vista do Rio Branco, tendo então dois milhões, cento e quarenta e um mil trezentos e dezesseis limitando-se: ao Norte e Leste, com a Venezuela, pelos Montes Roraima (dois mil oitocentos e setenta e cinco metros de altura) e Caburaí (fronteira com a Guiana Inglesa) e pelo Rio Maú; ao Sul, com a cidade de Moura, pelos Rios Catrimâni e Anauá. E sua faixa de fronteira se alongava por novecentos e cinqüenta e oito quilômetros, com a Venezuela e por novecentos e sessenta e quatro com a Guiana Inglesa.
Fazenda Boa Vista e Igreja Matriz, 1905 (Acervo PMBV). Atrás do fotógrafo ficava o Porto do Cmento.
II
O povoamento do Rio Branco muito se deve aos cidadãos Inácio Lopes de Magalhães, que fundou a primeira escola em Boa Vista e da qual foi depois professor o tão querido Velho Mota, ou melhor, João Capistrano da Silva Mota; Sebastião Diniz, Fábio Leite, Carlos Mardel de Magalhães e Professor Diomedes Souto Maior.
Banhava a cidade o Rio Branco, formado pelo Itacutu, vindo da Serra do Pacaraima e pelo Uraricoera, oriundo da junção do Santa Rosa com o Maracá, os quais rodeavam a extensíssima Ilha de Santa Rosa Ou Maracá.
Município bastante rico, ficava Boa Vista quase completamente isolada de Manaus no verão, quando então o rio impossibilitava, pela seca, a navegação em grande parte. E sendo a água o único elo existente entre as duas cidades, ficava a população carecendo do necessário, pois raríssimo era o motor que se atrevia a subir e descer o perigoso rio.
O solo do Município tinha setenta por cento de planalto e trinta por cento de área montanhosa, salientando-se a Cordilheira do Parima, continuação dos Andes, com a Serra do Parima, a mil e cinqüenta e um metros de altitude e a do Tepequém, com mil e quatrocentos metros.
Muito espalhada, com poucas casas de alvenaria e inúmeras de taipa, cobertas de palha de buriti ou inajá. Sem árvores, sem praças e sem flores. Prédios velhos e feios. Quintais abertos e abandonados, sem uma horta ou jardinzinho. Só um bangalô, à distância, embelezando a paisagem. Nenhum grupo escolar, sendo raras suas escolas, regidas por professores primários. Sem cais e as margens do rio terríveis para a atracação das embarcações.
Ruas estreitas e barrentas e no centro da cidade um coreto coberto de palha. Nenhuma indústria. Comércio regular e população igual à das cidades interioranas: curiosa, maledicente, hospitaleira, alegre e amiga de festas e piqueniques.
A Igreja, bonitinha e bem conservada. Os dois únicos prédios novos e modernos, obra de Frei Gaspar, irmão leigo beneditino, pertenciam a uma comunidade estrangeira da Baviera: eram a Prelazia e o Hospital Nossa Senhora de Fátima, servida por dezesseis Madres Missionárias alemãs beneditinas. Como não havia médicos, Madre Radegundes, farmacêutica, operava. Eram elas as únicas pessoas que vendiam leite e verduras à cidade. O prédio da Prefeitura, de construção antiga, era interessante, com uma franjinha e um colar de mosaicos azulados. Mas os fundos eram cobertos de palha e davam para o rio. A cadeia, exígua e frágil, agarrava-se
desesperadamente aos fundos da Prefeitura, como a pedir-lhe que não a desamparasse senão morreria estatelada no chão.
Todo o policiamento era feito por três guardas municipais, com uniforme de camisa cáqui, calça de mescla e cinturão. Freqüentemente, de fuzil na mão, um ou dois deles levavam os presos para cortar lenha e capinar as ruas. Mal alimentados e maltratados, os sentenciados trabalhavam por dois mil réis diários, com comida.
O Mercado, paupérrimo. A matança de gado era livre. A carne não faltava e não havia fiscalização nas duas ou três reses que matavam por dia para o consumo da população.
O Quartel, na única praça sem adorno, era, parece mentira! Coberto de palha! A praça chamava-se Praça da Bandeira. E o Município fazia fronteira com dois países estrangeiros!
Perto do Quartel havia um campo de aterragem eventual de aviões. O Comandante dali devia estar em um quartel na fronteira brasíleo-venezuela ou guianense e não em Boa Vista, a dias de viagem das mesmas, visto como ainda não havia aviões e muito menos da FAB, anos mais tarde denominada Mãe de Boa Vista.
Ao redor da cidade, mato raso e cajuais de frutos saborosíssimos. O vinho de buriti, maravilhoso sempre, era vendido no Reis e no Chico Benício. E coalhada, longe, numa casinha isolada. O leite, ótimo, sem a mistura triste da água, mas escasso. Poucas frutas, mas todas excelentes. Ovos? Galinhas? Porcos? Outra criação doméstica? Cousa rara ali, sem mesmo se saber porque, pois espaço havia de sobra.
Nenhum cinema. Um clube, Os Caiçaras, de madeira, onde o pessoal se divertia. Nenhuma farmácia particular. E nem luz elétrica funcionando, com força motriz tão perto... e a escassa que havia só era acesa à chegada de personalidades de Manaus. E em cada canto de rua, baiúcas e bares repletos de bebidas e de jogadores.
E as autoridades, então? O Juiz de Direito, Dr. Vinitius, inteligente, bondoso e empreendedor, era dono de motor, no qual viajava e comerciava, de sociedade com o sogro, prestigioso político local e de coração grande: era o fazendeiro Homero Cruz. O Prefeito era caçador-pescador-fazendeiro e político temido e poderoso. Também tinha o coração largo e era tremendamente hospitaleiro. O Delegado de Polícia era miudinho, padeiro e vendedor de máquinas de costuras. E assim por diante...