segunda-feira, maio 30, 2005


Histórias de índio: sobrevivendo.


Meus pais são de Boa Vista. Ele é descendente de uma índia macuxi com um fazendeiro. Ela, de um paraense com uma bisneta de espanhol.

Namoraram desde os 15 anos de idade. Só casaram aos 21 porque meus avós não autorizaram a união deles aos 18.

Antes da maioridade, meu pai, seu Jucá, se embrenhou pelos caminhos de boi que levavam à Venezuela muito antes que fosse aberta a BR 174, que liga Manaus à Pacaraima, e conheceu os garimpos da região.

Depois de servir o Exército na fronteira com a Guiana, foi para Manaus, onde estava quando casou por procuração com dona Neide.

Apressado, nasci antes do tempo e fui parar numa incubadora. Mas antes de mim, houve três tentativas de gravidez frustradas pela natureza.

Na minha vez, rezaram e fizeram promessas para santos que nunca venerei mas que devem ter feito sua parte no processo.

Era tão pequenino que dona Neide me colocava numa almofada para mamar. Não fosse isso, escorregava entre seus braços.

Seu Juca só me viu depois de um mês de haver nascido, quando voltou para casa com uma bala no corpo e o desengano dos médicos. Salvou-se com os bons tratos da família.

Bebê ainda, quase morri queimado numa rede. Nos verões de antigamente sempre faltava combustível para a usina geradora, incêndios aconteciam comumente. Hoje, somos abastecidos pela energia elétrica da Venezuela e a termoelétrica foi desativada.

Aos seis anos, peguei hepatite. Amarelinho, fui também desenganado pelos médicos do hospital mais próximo, em Upata, a 100 quilômetros de casa. Queriam me deixar numa sala, separado de todos, mas dona Neide fez um escândalo, assinou todos os termos de compromisso que colocaram na sua frente e me tirou de lá.

Se é para morrer, vai morrer em casa, depois que eu fizer de tudo para salvá-lo, disse à época, quando me levou para nossa casa na rua Progreso, em Guasipati.

Curandeiros fizeram remédios estranhos, vizinhos fizeram promessas para santas que ficavam em capelas de cidades abandonadas, muita melancia com açúcar foi engolida e meses se passaram até que, por fim, amanheci um dia curado da hepatite.

Quer dizer, sou um sobrevivente.

Sendo assim, não vai ser o trabalho com um texto complicado de Lévi-Strauss que vai me derrubar. Não mesmo. Quem vai dançar será ele.

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