Sábado, 02.05
Osvaldo voltou para o seu galho. Me lembra uma música do Nicola de Bari esse seu vaivém pelo mundo. (Sim, música de velho. Nicola de Bari me relembra meus pais e um disco que tínhamos quando vivíamos na Venezuela).
Saí para correr eram 6h30 e o céu estava bem nublado.
Vi milho na avenida de barro, a chuva me pegou e dei um pique violento para voltar à casa. No meio da corrida lembrei das aulas de educação física na escola primária. Nunca fui bom de pique e sempre era o último a chegar.
Chuvisca e do conforto de minha casa penso nas filas na frente das agências da Caixa Econômica Federal. Desde ontem, pelas fotos que vi nos grupos, tem gente esperando para sacar a grana do auxílio emergencial. Tenho sorte de não precisar disso. Poderia alegar meritocracia, como muitos, mas não. Sei que tive sorte de ter apoio para poder estudar em paz.
Balu, fiel companheiro das manhãs. Quem vê, não sabe o quanto me perturba querendo me lamber na hora das flexões.
Almas sebosas fizeram um card espalhando que havia mais contaminados em Roraima pela Covid-19 do que o número real oficial. O pessoal no grupo dos jornalistas comentou, perguntou e só de noite a galera da comunicação do governo se coçou para arrumar. Antes tarde do que nunca.
Dia de filme em família. O ator é o amoreco da Zanny, Will Smith. "Focus" tem cenas rodadas em Buenos Aires e eu reconheço algumas locações por conta da viagem para lá em...2017, 2018...Faz tanto tempo. Aproveito e explico/digo para Edgarzinho que os autores de certa música que toca no filme é a banda Rolling Stones.
Domingo, 03.05
Oswaldo (com W, como sugeriu a Vanessa), voou.
Finais de semana são dias longos quando não se tem para onde ir. Zanny desde ontem à tarde está chapiscando o muro. É minha poeta-pedreira ou é pedreira-poeta? De noite, depois da labuta na obra, botou um vídeo no Youtube com a Regina Lima cantando um xote que compôs. Minha compositora-pedreira-pedrita.
E eu? De uma cadeira para outra. Incomodado com o calor e dores na cervical e nos braços não faço nada além do normal obrigatório. Não varri nem passei pano e o banheiro só lavo segunda ou terça agora. Era pra gente ter ido no APT arrumar, mas não rolou disposição. Só achei forças para ver uns vídeos sobre o uso das serras tico-tico. Está na hora da gente mexer na que compramos há meses e nunca testamos.
Sobre planos e 2020:
A agonia de não ter o que fazer me fez fazer o que há meses queria: fui do lado de casa, peguei um pedaço de cerâmica e pintei. Passei o tempo e me diverti. Acho que nasce um novo Basquiat.
Segunda, 04.05.20
Oswaldo não voltou para o seu galho.
Preguiça + frio= sem coragem para sair cedo de casa e ir correr. Melhor puxar a nêga para dormir no meu peito.
Morreu o cantor e compositor Aldir Blanc. Motivo: Covid-19. Hoje é dia de ouvi-lo muito, sobretudo Catavento e Girassol. Aldir se soma a outros 7.025 mortos até ontem no Brasil por conta do coronavírus. Norte e Nordeste registram maior número de mortes e contaminados. Roraima tem 806 casos confirmados e 11 mortes. Até ontem eram 32 pessoas internadas. Enquanto uns morrem, o que o presidente fez? Foi para manifestação em BSB a seu favor e a favor de um golpe de estado. Levou a filha pequena e bandeiras dos EUA e de Israel (subserviência que fala?) para o protesto.
Que merda o Brasil fez? Que merda o brasil (assim, minúsculo mesmo) continua fazendo?
Jornalistas foram agredidos. O mundo político e social reage, mas o bolsonarismo não recua. Em Roraima o povo acha que jornalista deve apanhar também. Basta ser da Globolixo ou e qualquer veículo que não elogie o genocida. Todo mundo é especialista em pauta e cobertura agora.
Me diverti: fiz uma live no instagram com o Timóteo. Era para ser 20 minutos apenas e a primeira hora passou voando. Só percebemos quando o sistema do IG nos expulsou. Voltamos e ficamos quase outra hora. Algumas pessoas queridas ficaram nos acompanhando em nosso papo de boteco. Ah, sim. Não falamos de nada e falamos de tudo. Tipo aquela série de humor do Seinfeld.
Terça, 05.05.2020
Acordei animado para ir correr, tipo umas cinco horas. Murchei quando vi que tava garoando. Só parou de chover lá pelas 9h. Saco.
Oswaldo, o viajante, voltou para seu galho. Ou será que é outro, um primo, um sósia, um irmão gêmeo?
Oswaldo tá lá, meditando, e dois periquitos e outro passarinho no maior converse na árvore dele (ou nossa?).
Dia de pintar cerâmica. Fiz mais uma de manhã. Acho que foi esse esforço que me deixou com dor de cabeça.
Tarde meio quente. Trabalho remoto eu, Zanny mexendo com as mudinhas de pitanga, Edgarzinho já fez as tarefas e fica conversando com a vovó Alba sobre o jogo de celular.
Chegou e-mail de uma revista dizendo que tive um poema selecionado para a próxima edição on-line. Fiquei contente.
Vanessa passou um som cantado em espanhol dum cantor daqui, o Murilo Modesto. Fui ouvir o EP todo e gostei. Eu passei sons que falam de migração para várias pessoas. Hoje teve música que só nos inbox da vida.
Corri de noite na escuridão da rua de barro. Minhas pernas doeram e faltou ar. Não rendeu. Não rende quase nunca.
Lua cheia na rua de barro |
Pintamos, Edgarzinho e eu, cerâmicas.
13 mortos por Covid-19 em Roraima |
Quarta, 06.05.2020
Balu me acordou, Oswaldo amanheceu no galho do abacateiro, choveu até umas 9h, 10h. Pesquisei concursos literários, discuti a relevância musical de Los Hermanos com a Vanessa, trabalhei quase sem net à tarde, vi uns vídeos de matemática com Edgarzinho (minha memória de peixinho dourado para números continua a mesma). Fechei com o Timóteo para fazer uma live de noite.
Live do ano |
Fizemos a live. Matamos um pouco a saudade e fizemos o povo rir um pouco. Ficou numa média de 10 a 12 pessoas, mas repetíamos para o público que eram 10 mil. Faltou energia no final e rolaram efeitos especiais. A Jéssica mandou prints pra a gente lembrar como foi.
Quinta, 07.05.2020
Fui dormir umas 23h30. Acordei não sei que horas, mas quando cansei de tentar voltar a dormir, eram 5h06. Corri. Não queria, mas manhãs sem chuva serão raras. No grupo dos jornalistas, Cyneida compartilha matéria sobre a idiotice de um general da operação Acolhida. O cara prega a imunidade de rebanho.
Quero, mas não consigo produzir literatura. Fico a manhã toda entre o Whatsapp e as redes sociais conversando e vadiando. A casa toda está em slow. Sobretudo o Edgarzinho, aproveitando a TV nova que lhe comprei com suas economias de mesada e outras granas recebidas dos avós durante meses. (Receber um produto em casa nunca mais será simples: eu peguei a caixa na varanda com todo o cuidado do mundo e Zanny limpou até os pés do aparelho, mesmo tendo chegados embrulhados. Desconfiança nunca é demais.).
Estou cansando da situação, do todo. Ontem a Isadora me perguntou como andavam as coisas e lhe disse:
Entre a felicidade de ter um emprego em que posso fazer trabalho remoto, a agonia de ver meia Boa Vista ignorando a pandemia e a ansiedade de ver tudo isso passar e poder fazer compras sem achar que vou pegar e passar a doença para minha mulher e filho. Ah, e com saudades de minha mãe e avó, que não visito há quase 50 dias ou por aí.
Basicamente assim ando.
De tarde, no grupo dos escritores, ficamos sabendo que a filha da Jacinta teve Covid-19 e está em recuperação. Febres intensas e outros sintomas durante dias, conta. Assustador. Fez um poema sobre isso.
Estamos todos quebrando sem querer.
Às 18h, Oswaldo não estava na árvore. A noite está fria. Edgarzinho usa meu gorro dos Andes e boto uma manga comprida pela primeira vez no inverno. Minha mãe não atende a ligação, o vizinho prepara uma carne cheirosa que só e bebo uma cerveja na varanda. A noite e a vida ainda continuam. Vejo mais um capítulo da série Peaky Blinders, algo curto no Youtube e vou dormir.
Sexta, 08.05.2020
É madrugada, acordo, chove, como, Zanny faz yoga, Edgarzinho e dona Alba dormem. Temos conforto, mas isso não impede o desconforto. Como será o retorno à normalidade? Quando será o retorno à normalidade? E digo normalidade porque acredito que não melhoraremos enquanto mundo. Falimos. Somos um país binário e quem está no centro é para sentir-se superior (mesmo não havendo centro que dure duas chuvas). Sabe a cabeça pesando? Sabe o tempo pesando? São nove semanas assim já. Domingo é dia das mães e eu, que nunca liguei para datas assim, morro de vontade de passar o dia com a minha velhinha, de pedir a benção de minha avó Maria José. Comemos, temos o que comer, mas isso não impede outras fomes. Somos mais que um estômago, mais que necessidades físicas. Ontem teve forró em alguma das casas por trás da nossa. O povo não aceita ficar quieto, isolado. Roraima é fronteira, terra de ninguém, terra de oportunidades. Lembro que um perfil de humor no instagram me bloqueou porque comentei que estava fazendo piadas xenofóbicas com venezuelanos e a questão do auxílio emergencial. Replicou dizendo que era crítica social. Respondi dizendo que não e apontei a outra piada do dia, homofóbica. Ganhei block... Roraima, terra onde gente se apropria de referências indígenas para repetir o discurso opressor. Quantos casos teremos hoje registrados? Essa nossa curva deveria estar caindo, mas somos irresponsáveis, somos semideuses vacinados contra tudo e contra todos depois de tantos anos de dengue, malária, paludismo, viroses sem nome e sem destino. Choveu de tarde, apareceram umas goteiras onde não havia goteiras. Um dia, quando a pandemia baixar, chamarei o rapaz que fez o conserto das outras goteiras. Quando será que voltaremos à normalidade? O que será a nova normalidade? Estou cansado deste diário e pode ser que seja o último, pode ser que não. Leila disse para ler A peste, de Camus. Baixei no celular, baixe no computador, mas tenho preguiça de ler muito em PDF. A peste, apeste, peste. São quase 18h, termina mais uma semana de trabalho remoto, minhas costas doem e não vou revisar o que escrevi hoje. Quem ler, que ache os erros. Zanny, preta linda, fez bolo e eu fiz suco de limão.
Oswaldo não dormiu, mas amanheceu no abacateiro. E pegou chuva o dia todo.
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Este é o oitavo registro dos meus dias de quarentena e distanciamento social durante a pandemia da covid-19. Tem outras postagens aqui.
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