quarta-feira, setembro 22, 2004

Pois é, meu senhor. As coisas não são como parecem. Basta a gente olhar de baixo para cima e tudo muda. É sério. Tem gente estudando isso. Esses doutores da universidade, esse povo que vive com a cara enfiada nos livros. Eu? Não. Eu nunca consegui passar na prova do vestibular. Depois perdi a vontade de estudar. O que fiz? Ah, eu era jovem, tinha umas economias, não gostava da minha cidade e decidi sair pelo mundo.
Passei uns quinze anos viajando por uns três continentes. Sabe aquele filme que passou um dia desses no cinema, aquele do livro, caderno, diário da moto? Então. Não tem aquela parte do deserto que os caras vão caminhando? Eu trabalhei ali pertinho uns cinco meses.
Como, o senhor só assiste jogo de futebol? Ah, mas eu também adoro. Todo domingo vou para um bar ou lanchonete qualquer para ver o campeonato brasileiro. Já foi melhor, sabe? Na Itália eu...sim eu já estive na Itália. Faz muito tempo. Quase que peço a cidadania de lá. Mas briguei com o dono da pizzaria onde trabalhava, quebrei a cara dele e tive de sair fugido do país. Os policiais devem estar me procurando até hoje.
Mas como ia lhe contando...Sim, claro, pode servir mais uma cerveja. Sim, sei que o senhor não tem como ficar só me ouvindo sem vender nada. Me diga, o movimento por aqui é bom? Ah, depende do pagamento do governo para agitar as coisas. Nossa, parece coisa de cidade pequena do interior. Desculpe, não queria ofender o senhor nem a sua cidade. Que legal. O senhor nasceu e se criou aqui, assim como os seus filhos? Poxa, eu não tenho filhos. E da minha família faz uns 18 anos que perdi o contato. De vez em quando ligo para minha mãe para avisar que estou vivo. É verdade. Mãe é uma das melhores coisas do mundo. Bem, não me casei por não encontrar nenhuma mulher que tivesse coragem de me acompanhar nas minhas viagens. Sim, amiguei várias vezes. Teve a Luisa, que era dona de um bar como o senhor. A Matilde era artista, fazia caixinhas de papelão colorido e vendia nas praças. A Joana era professora e escritora. A conheci num coquetel de lançamento de um livro. Tava lá só para filar comida quando começamos a falar sobre música da América Central. Mas eu gostei mesmo foi da Fernanda, balconista de uma farmácia. Adorávamos brincar de doutora e doente.
Mas sabe como é. Tudo se acaba na vida, a estrada chama de novo e a gente tem que seguir os instintos. Acho que eu nasci caminhando, sabe? O que faço aqui? Não, só parei por conta do ônibus. Parece que quebrou uma peça e vamos ficar aqui esta noite. Amanha sigo rumo ao litoral. Dizem que a temporada de pesca tá rendendo um bom dinheiro para quem tem as manhas das redes. É, também fui pescador quando estive no África. Já fiz de tudo na vida para ganhar o dinheiro da passagem do próximo trecho.
Nossa, tá tarde, né? Vou descansar agora naquela pousada da esquina. Não preciso pagar nada? Muito obrigado, senhor. Vou lhe contar mais uma coisa. Quando se chega na minha idade, a gente começa a repensar a história da nossa vida. E eu estou querendo escrever um livro sobre tudo o que vivi. O que o senhor acha?



Nenhum comentário: