Diferentemente de João do Santo Cristo, que quando criança
só pensava em ser bandido, ainda mais quando de um tiro de soldado o pai
morreu, eu pensava em ser psicólogo, ainda mais quando gente bem mais velha vinha
conversar comigo buscando soluções para suas vidas confusas e eu conseguir
racionalizar e dar-lhes o recado.
Teria sido um bom psicólogo se, quando pós-adolescente,
houvesse oferta desse curso em Roraima. Tempos distantes aqueles. De todas as
IAS que gostava (filosofia, psicologia, fisioterapia), nada tinha em Roraima. Sobraram-me
os cursos por aproximação, pelo gostar.
Letras ou Comunicação Social? A única universidade daquele
tempo no meio do mundo era a UFRR, que publicava um livreto com as ementas e a
relação de disciplinas de cada curso. Escolhi jornalismo a um dia de encerrarem
as inscrições no vestibular. Tudo pelo nome bonito da disciplina “Comunicação
Comunitária”.
- Vamos falar com as pessoas, nas comunidades? Que legal,
pensei, iludido. Nunca rolou, mas as pedras e os meses sim. Formei-me
jornalista. O primeiro graduado da família. Mamãe ficou feliz, muito feliz. O vô
Borges ficou um orgulho só com a vó Maria.
Depois, bem depois, buscando ocupar o tempo, fui cursar
Antropologia. No meio do curso, mudei para Sociologia. No final da primeira
semana de cada semestre, pensava: o que estou fazendo aqui? Já tenho carreira,
emprego e estresse suficiente com isso.
Mesmo assim, continuava, semestre após semestre, greve após
greve. Formei-me sociólogo com nota dez no trabalho de conclusão de curso. Histórias
de velhos na Jaime Brasil. Curti fazer aquilo. Foi duro, mas consegui. Meu
orientador ficou emocionado, quase chorou. Um lindo ele, titulação de mestre
tendo a minha idade. Ou era mais novo? Bem, era uma referência para tentar
fazer um mestrado. Nunca fiz, nunca consegui. Nem mesmo agora, que poderia,
estou conseguindo. Cada um carrega suas pedras e as minhas fazem enormes
barreiras a serem transpostas.
Mas do que estava escrevendo mesmo no começo? Ah, sim. Sobre
como poderia ter sido um bom psicólogo. Quem sabe? Ainda consigo ouvir bem as
pessoas e dar orientações claras a seus questionamentos. Muitas não seguem. Outras
pensam, colocam em prática e se dão bem. Ou, pelo menos, ficam melhores que
antes. Quer dizer, acho.
Tenho alguma facilidade para extrair das pessoas o que elas
têm de melhor. Basta que me esforce um pouco e supere minha preguiça de
conviver e viver. Mas o fato que merece destaque é a capacidade de conseguir o
contrário.
Consigo me surpreender com a minha rapidez em fazer as pessoas
destilarem contra mim o que carregam de mais pesado e ruim dentro delas. E faço
isso sem querer, inconscientemente, assim, tipo um poder mutante, como aqueles
personagens de HQs que depois viram miniaturas e a gente coleciona.
Rolou semana passada isso. Surto coletivo de raiva e mágoa
surgindo inesperadamente no meio da noite pelas estradas digitais da vida.
Pensei ter perdido esse dom esquisito, mas esqueci a regra
básica da mutação: grandes poderes trazem grandes confusões.
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