Texto de Plínio Vicente da Silva, jornalista radicado por estas bandas desde 1984. Reparem na ausência da palavra “que”, a maldita muleta que todo jornalista acaba uma hora usando.
Não gosto de me gabar, mas fomos eu, Fernando Estrella, a Folha de Boa Vista e o Estadão responsáveis pela construção da Base Aérea. Já contei várias vezes essa história e a Folha já relembrou o fato em uma de suas edições comemorativas. Mas nunca é demais recontá-la, aproveitando agora o gancho das comemorações do 24º aniversário de existência dessa unidade da Força Aérea Brasileira (FAB) em Roraima.
Recém-chegado de São Paulo com a missão de instalar o escritório de correspondente do jornal O Estado de S. Paulo na capital do então Território Federal de Roraima, fui morar no conjunto Caçari. Já mantinha relações profissionais e de amizade com o pessoal da Folha e acabei ganhando um espaço para poder trabalhar, dando em troca minha colaboração ao jornal, vivendo ainda seus primeiros passos.
Boa Vista foi uma grata surpresa a mim e a toda a família. Prisioneiros de um apartamento em condomínio fechado na Paulicéia, meus filhos ganharam a liberdade só encontrada mesmo aqui no lavrado roraimense. Eu, por minha vez, pude finalmente fazer do churrasco domingueiro o lazer jamais me permitido em São Paulo.
Numa dessas manhãs (Maio de 1984) cuidava de acender o carvão da churrasqueira, à sombra de um caimbezeiro no quintal, quando vi quatro Tucanos T-27 passarem sobre minha casa, seguidos de um Hércules C-130. Como sabia de apenas quatro aviões pequenos (o do governo e os táxis-aéreos do comandante Alves, do Robertinho e do lendário Piauí) e não se tratavam de aeronaves da Esquadrilha da Fumaça (as cores eram diferentes), meu faro de repórter disparou o alarme. Liguei para o Estrella e fomos ao Aeroporto Internacional de Boa Vista descobrir o segredo daqueles aviões.
Não havia vigilância policial, nenhuma segurança armada e ninguém impediu nosso acesso ao pátio. Até fomos convidados pelo superintendente da Infraero, Euclydes Monerat, a visitar o interior do Hércules, cuja carga reunia mísseis Piranha, metralhadoras ponto 50, munição e peças de reposição.
Enquanto Estrella fotograva os Tucanos pintados com as cores da Força Aérea e o brasão de Honduras e mais o restante da carga do C-130, fui ao bar do aeroporto e abordei o comandante da esquadrilha, coronel Armínio Gutierrez. Coca-Cola na mão, entregou o jogo. O Brasil vendera oito Tucanos para seu país e aqueles eram os primeiros quatro do lote. Honduras estava em guerra com El Salvador e uma resolução da ONU proibia a venda de armamentos e aviões militares para países localizados em zona de conflito. Para contornar o impedimento, o governo norte-americano negociou com o Brasil a venda dos Tucanos, considerados aviões de treinamento e, portanto, à margem da proibição.
Base Aérea de Boa Vista
Para os leigos vale a explicação: o Tucano tem dois assentos, um para o aluno e outro para o instrutor. Conforme me explicou o comandante, bastava instalar uma metralhadora para o artilheiro, retirar os tanques suplementares nas extremidades das asas, substituindo-os por dois Piranhas, e ele virava um avião de caça anti-guerrilha, pois pode voar a baixa altitude. Ademais, por ser uma aeronave versátil, consegue atirar em alvos móveis a pequenas distâncias, causando estragos em colunas de deslocamento pela selva, como ocorria naquela guerra da América Central.
A matéria e as fotos foram bater na redação do Estadão e viraram manchete simultaneamente com a Folha de Boa Vista. A repercussão foi imediata. O Departamento de Estado norte-americano negou a transação, o Itamaraty desconversou, a Embraer silenciou e eu acabei indo parar no quartel do 2º Batalhão Especial de Fronteira (precursor da atual 1ª Brigada de Infantaria de Selva) para, a “convite” do comandante, coronel Mirócem, prestar esclarecimentos ao Serviço Nacional de Informação, o temido SNI. Dois agentes vieram de Manaus com a missão de descobrir como eu tivera acesso a um segredo militar muito bem guardado na Embraer em São José dos Campos (SP) e vazado num distante e solitário aeroporto da Amazônia.
Pude lhes dizer apenas ter-me valido de duas armas para descobrir a presença dos aviões: meus olhos, reveladores dos Tucanos passando sobre minha casa, e o instinto natural da curiosidade, cujo cultivo recomendo a todo repórter por se tratar de ferramenta de trabalho. Ele me levou considerar a estranheza daqueles objetos sobrevoando Boa Vista na manhã de um dos meus domingos.
Depois da reportagem e toda a repercussão causada dentro e fora do Brasil, o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos, de quem tive o privilégio de ser amigo e de quem merecia respeito ainda antes de eu vir para Roraima, determinou a construção da Base Aérea de Boa Vista. Portanto, paternalismo à parte, não me resta dúvida: eu, Fernando Estrela, a Folha e o Estadão somos, sim, personagens da história dessa importante organização militar sediada em Roraima.
Plínio Vicente da Silva