O fim da viagem
Então, depois de sobreviver a falhas mecânicas e humanas em dois países , percorrer milhares de quilômetros, há uma hora em que a falha deve ser nossa e não dos outros.
Leia mais e saberá do que se trata.
Mas antes, vamos traçar a rota da viagem à Machupicchu, que começou no dia 12 de dezembro de 2004.
Boa Vista (RR) a Manaus (AM): bus
Manaus a Tabatinga (fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru): avião
Tabatinga a Iquitos (Peru): barco rápido
Iquitos a Lima (capital do Peru): bus
Lima a Arequipa: bus
Arequipa, Vale do Colca, Arequipa: bus
Arequipa a Cuzco: bus
Cuzco, Vale Sagrado dos Incas, Cuzco: bus
Cuzco a Puno: bus
Até aqui, havia rodado uns 5.500 km. Após a última postagem, feita em Puno, passei o maior frio de toda a viagem. Puno gelou às 17h, com uma chuva fina que me obrigou a esconder-me no hostal bem cedo. Aproveitei para ler o livro de quadrinhos da Mafalda, ouvir rádio e deixar tudo pronto para o dia 24 de dezembro, quando começaria a viagem de volta ao Brasil.
24 de dezembro, Puno, 8h, em direção a La Paz.
Deixo para trás os ciclotáxis de Puno e embarco no bus com muitos europeus que vão ficar em Copacabana, a única escala da viagem.
Na fronteira do Peru com a Bolívia, troco dólares por bolivianos, dou entrada no país no mesmo dia que vencia minha permissão de 10 dias para estar no Peru (prazo que pedi para que sobrasse tempo e não propositadamente, vale dizer).
Avançamos pelo altiplano, tendo o lago Titicaca como companheiro ao lado esquerdo da estrada e o atravessamos de balsa num estreito.
Descubro tarde que o câmbio do lado boliviano é mais vantajoso (um dólar por oito bolivianos e não 1x7,8 como no Peru).
Em Copacabana, todos pagamos um boliviano de taxa de entrada à cidade. Sem exceção. Adiantamos os relógios em uma hora e recomeçamos a viagem às 13hh30, depois de 60 minutos de descanso.
Há crianças gritando por dinheiro e doces ao longo do caminho boliviano. Invejo um pouco a coragem e disposição de uma britânica, filha de uma filipina com um cretense, que fez o caminho do Inka, trilha que dura vários dias e reproduz o trecho que unia a capital do império inka, Cuzco, a Machupichhu.
Chegamos a La Paz às 17 horas. Procuro pelas ruas cheias de fumaça uma agência para comprar uma passagem de avião. Não quero passar mais quatro dias viajando. Tem um avião sim, para amanhã, me diz a moça da agência. Custa 350 dólares e vai para São Paulo. Outro mais barato? Sim, custa 330 dólares...
Saio para procurar a rodoviária desta poluída cidade que me parece uma Sampa sem ordem no trânsito, mas com muito menos oxigênio. As duas mochilas me cansam e o ar seco irrita minhas narinas, de onde sai catarro com sangue há dias. Na entrada da rodoviária, um boliviano treina um salto de um jeito conhecido. Sim, é capoeira e ele treina sozinho, me conta.
Passagem para Cochabamba somente no ônibus das 21 horas. Meu natal será na estrada. O meu e o de muitas outras pessoas.
É o primeiro natal que passo realmente sozinho, sem amigos ou familiares por perto. Não foi tão ruim, concluirei no outro dia, já em Cochama, como apelidam a cidade.
Saímos da rodoviária às 21 horas, como combinado, mas ficamos parados 80 minutos no subúrbio de Lima. Entram vendedores de chocolates e livros para tentar tirar o lucro da noite. Poucas vendas, apesar da boa oratória.
25 de dezembro, 4h40, Cochabamba
Os vendedores da empresa Expreso San Luiz gritam a toda voz que o próximo bus para Santa Cruz de la Sierra sai às 5h30, por apenas 50 bolivianos. Descubrirei na estrada que a passagem oscilou entre 30 e 50 pratas, dependendo do horário de compra.
O ônibus deixará a estação somente às 6h30, quebrará às 7h na saída de Cochama e o motorista e as duas crianças que o auxiliam nesta viagem de 495 km serão abordados pela polícia em seguida. Os responsáveis enviarão outro ônibus somente às 7h45 para recolher os passageiros e seguir viagem. Ao lado do motorista, um saco de folhas de coca.
Passamos pela serra da região do Chapare, onde o MAS, partido do deputado Evo Morales, liderança indígena boliviana, mantém uma luta para permitir que os agricultores possam continuar cultivando a planta da coca e manter uma tradição milenar. Como dizem no Peru, a coca é do bem, a cocaína, essa sim, é do mal.
Às 11 horas, já nos trópicos, o motorista e seu auxiliar, também um adolescente de não mais de 16 anos, aproveitam a parada de 60 minutos para o almoço e trocam todas as correias do motor.
Às 12h45, ao atravessar a ponte do rio Zapata, um dos pneus traseiros explodirá, sendo substituído por outro tão liso como um CD novo.
Na estrada, construções tomadas pela selva, cidadezinhas, plantações, fazendas, arvores frutíferas como só nos trópicos é possível. Pés de manga atiçam minha fome.
Chegamos vivos a Santa Cruz às 16h30.
Na estação de trem, filas imensas de turistas que vão passar o reveillon em Balneário Camburiu, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.
Não há passagem de trem, não há ônibus para Puerto Quijarro, as autoridades me recomendam não comprar as passagens oferecidas pelos cambistas e esperar até o próximo dia, quando talvez haja vagas nos vagões.
Decido arriscar com os cambistas se eles conseguirem me colocar dentro do trem, que sai às 17h30, ou seja, em menos de 20 minutos.
As propostas começam em 100 bolivianos. Outro me oferece uma passagem de janela por 80. Termino comprando pelo preço de balcão (52 bolivianos) e atravesso fácil pela fiscalização de documentos graças ao contato do cambista. Mas o medo sobreviverá até os fiscais do trem marcarem minha poltrona e me desejarem boa viagem.
26 de dezembro, Puerto Quijarro, 14 horas e 340 km e muitos ruídos de trem depois.
Para deixar a Bolívia, é necessário pagar 10 bolivianos. As moedas que seriam para a coleção acabam ficando na imigração.
Em Corumbá, a primeira grande marcada da viagem: esqueço de perguntar que horas são e quando percebo, meu ônibus já partiu há 30 minutos. O fuso agora está uma hora adiante do horário boliviano. Minhas atuais 14h são na verdade as 15h deste pedaço do Brasil
Ônibus, agora, só às 17h30, com previsão de chegada em Campo Grande à meia-noite.
Na estrada, uma boliviana fica assombrada quando digo que comprei passagens de trens na mão de cambistas. Segundo me conta, a venda oficial somente recomeçaria no dia 3 de setembro. Até lá, estavam todos os trens lotados.
20 minutos de 27 de dezembro, Campo Grande.
Como eu, há muitas pessoas querendo passagens para Santa Catarina.
Para ficar perto de Florianópolis, compro uma para Curitiba. Previsão de saída: 6h10 minutos. Não vale a pena dormir por cinco horas. Melhor ficar acordado e fazer a barba para tirar a barba de índio depois de 13 dias de estrada.
Deixamos Campo Grande às 8h. Por sorte (e pelos quase R$ 150 reais pagos) é um bus cama, o que garante o conforto.
Atravessamos plantações de soja e de milho, principalmente, e passamos por Londrina e outras cidades. Ao meu lado, um casal parece estar em lua-de-mel e disposto a fazer amor dentro do veículo.
30 minutos de 28 de dezembro, Curitiba, 1.000 km depois.
Curita está fria, apesar de ser verão por estas bandas.
Próximo ônibus para Floripa? À 1h30, com três vagas ainda.
Floripa, pela manhã
Chego em Florianópolis às 6 horas da matina e como bom filho único ligo para dar notícias e tranqüilizar minha mãe.
Totalmente desorientado pelos fusos horários, esqueço que em Boa Vista, cidade brasileira no hemisfério norte, ainda são 4 da matina. Melhor ligar de madrugada que ouvir que nunca dei notícias, acredito.
Agora, é descansar, pensar na volta para BV, desta vez em avião, e escrever minha tese de mestrado em transportes coletivos públicos.
Então, depois de sobreviver a falhas mecânicas e humanas em dois países , percorrer milhares de quilômetros, há uma hora em que a falha deve ser nossa e não dos outros.
Leia mais e saberá do que se trata.
Mas antes, vamos traçar a rota da viagem à Machupicchu, que começou no dia 12 de dezembro de 2004.
Boa Vista (RR) a Manaus (AM): bus
Manaus a Tabatinga (fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru): avião
Tabatinga a Iquitos (Peru): barco rápido
Iquitos a Lima (capital do Peru): bus
Lima a Arequipa: bus
Arequipa, Vale do Colca, Arequipa: bus
Arequipa a Cuzco: bus
Cuzco, Vale Sagrado dos Incas, Cuzco: bus
Cuzco a Puno: bus
Até aqui, havia rodado uns 5.500 km. Após a última postagem, feita em Puno, passei o maior frio de toda a viagem. Puno gelou às 17h, com uma chuva fina que me obrigou a esconder-me no hostal bem cedo. Aproveitei para ler o livro de quadrinhos da Mafalda, ouvir rádio e deixar tudo pronto para o dia 24 de dezembro, quando começaria a viagem de volta ao Brasil.
24 de dezembro, Puno, 8h, em direção a La Paz.
Deixo para trás os ciclotáxis de Puno e embarco no bus com muitos europeus que vão ficar em Copacabana, a única escala da viagem.
Na fronteira do Peru com a Bolívia, troco dólares por bolivianos, dou entrada no país no mesmo dia que vencia minha permissão de 10 dias para estar no Peru (prazo que pedi para que sobrasse tempo e não propositadamente, vale dizer).
Avançamos pelo altiplano, tendo o lago Titicaca como companheiro ao lado esquerdo da estrada e o atravessamos de balsa num estreito.
Descubro tarde que o câmbio do lado boliviano é mais vantajoso (um dólar por oito bolivianos e não 1x7,8 como no Peru).
Em Copacabana, todos pagamos um boliviano de taxa de entrada à cidade. Sem exceção. Adiantamos os relógios em uma hora e recomeçamos a viagem às 13hh30, depois de 60 minutos de descanso.
Há crianças gritando por dinheiro e doces ao longo do caminho boliviano. Invejo um pouco a coragem e disposição de uma britânica, filha de uma filipina com um cretense, que fez o caminho do Inka, trilha que dura vários dias e reproduz o trecho que unia a capital do império inka, Cuzco, a Machupichhu.
Chegamos a La Paz às 17 horas. Procuro pelas ruas cheias de fumaça uma agência para comprar uma passagem de avião. Não quero passar mais quatro dias viajando. Tem um avião sim, para amanhã, me diz a moça da agência. Custa 350 dólares e vai para São Paulo. Outro mais barato? Sim, custa 330 dólares...
Saio para procurar a rodoviária desta poluída cidade que me parece uma Sampa sem ordem no trânsito, mas com muito menos oxigênio. As duas mochilas me cansam e o ar seco irrita minhas narinas, de onde sai catarro com sangue há dias. Na entrada da rodoviária, um boliviano treina um salto de um jeito conhecido. Sim, é capoeira e ele treina sozinho, me conta.
Passagem para Cochabamba somente no ônibus das 21 horas. Meu natal será na estrada. O meu e o de muitas outras pessoas.
É o primeiro natal que passo realmente sozinho, sem amigos ou familiares por perto. Não foi tão ruim, concluirei no outro dia, já em Cochama, como apelidam a cidade.
Saímos da rodoviária às 21 horas, como combinado, mas ficamos parados 80 minutos no subúrbio de Lima. Entram vendedores de chocolates e livros para tentar tirar o lucro da noite. Poucas vendas, apesar da boa oratória.
25 de dezembro, 4h40, Cochabamba
Os vendedores da empresa Expreso San Luiz gritam a toda voz que o próximo bus para Santa Cruz de la Sierra sai às 5h30, por apenas 50 bolivianos. Descubrirei na estrada que a passagem oscilou entre 30 e 50 pratas, dependendo do horário de compra.
O ônibus deixará a estação somente às 6h30, quebrará às 7h na saída de Cochama e o motorista e as duas crianças que o auxiliam nesta viagem de 495 km serão abordados pela polícia em seguida. Os responsáveis enviarão outro ônibus somente às 7h45 para recolher os passageiros e seguir viagem. Ao lado do motorista, um saco de folhas de coca.
Passamos pela serra da região do Chapare, onde o MAS, partido do deputado Evo Morales, liderança indígena boliviana, mantém uma luta para permitir que os agricultores possam continuar cultivando a planta da coca e manter uma tradição milenar. Como dizem no Peru, a coca é do bem, a cocaína, essa sim, é do mal.
Às 11 horas, já nos trópicos, o motorista e seu auxiliar, também um adolescente de não mais de 16 anos, aproveitam a parada de 60 minutos para o almoço e trocam todas as correias do motor.
Às 12h45, ao atravessar a ponte do rio Zapata, um dos pneus traseiros explodirá, sendo substituído por outro tão liso como um CD novo.
Na estrada, construções tomadas pela selva, cidadezinhas, plantações, fazendas, arvores frutíferas como só nos trópicos é possível. Pés de manga atiçam minha fome.
Chegamos vivos a Santa Cruz às 16h30.
Na estação de trem, filas imensas de turistas que vão passar o reveillon em Balneário Camburiu, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.
Não há passagem de trem, não há ônibus para Puerto Quijarro, as autoridades me recomendam não comprar as passagens oferecidas pelos cambistas e esperar até o próximo dia, quando talvez haja vagas nos vagões.
Decido arriscar com os cambistas se eles conseguirem me colocar dentro do trem, que sai às 17h30, ou seja, em menos de 20 minutos.
As propostas começam em 100 bolivianos. Outro me oferece uma passagem de janela por 80. Termino comprando pelo preço de balcão (52 bolivianos) e atravesso fácil pela fiscalização de documentos graças ao contato do cambista. Mas o medo sobreviverá até os fiscais do trem marcarem minha poltrona e me desejarem boa viagem.
26 de dezembro, Puerto Quijarro, 14 horas e 340 km e muitos ruídos de trem depois.
Para deixar a Bolívia, é necessário pagar 10 bolivianos. As moedas que seriam para a coleção acabam ficando na imigração.
Em Corumbá, a primeira grande marcada da viagem: esqueço de perguntar que horas são e quando percebo, meu ônibus já partiu há 30 minutos. O fuso agora está uma hora adiante do horário boliviano. Minhas atuais 14h são na verdade as 15h deste pedaço do Brasil
Ônibus, agora, só às 17h30, com previsão de chegada em Campo Grande à meia-noite.
Na estrada, uma boliviana fica assombrada quando digo que comprei passagens de trens na mão de cambistas. Segundo me conta, a venda oficial somente recomeçaria no dia 3 de setembro. Até lá, estavam todos os trens lotados.
20 minutos de 27 de dezembro, Campo Grande.
Como eu, há muitas pessoas querendo passagens para Santa Catarina.
Para ficar perto de Florianópolis, compro uma para Curitiba. Previsão de saída: 6h10 minutos. Não vale a pena dormir por cinco horas. Melhor ficar acordado e fazer a barba para tirar a barba de índio depois de 13 dias de estrada.
Deixamos Campo Grande às 8h. Por sorte (e pelos quase R$ 150 reais pagos) é um bus cama, o que garante o conforto.
Atravessamos plantações de soja e de milho, principalmente, e passamos por Londrina e outras cidades. Ao meu lado, um casal parece estar em lua-de-mel e disposto a fazer amor dentro do veículo.
30 minutos de 28 de dezembro, Curitiba, 1.000 km depois.
Curita está fria, apesar de ser verão por estas bandas.
Próximo ônibus para Floripa? À 1h30, com três vagas ainda.
Floripa, pela manhã
Chego em Florianópolis às 6 horas da matina e como bom filho único ligo para dar notícias e tranqüilizar minha mãe.
Totalmente desorientado pelos fusos horários, esqueço que em Boa Vista, cidade brasileira no hemisfério norte, ainda são 4 da matina. Melhor ligar de madrugada que ouvir que nunca dei notícias, acredito.
Agora, é descansar, pensar na volta para BV, desta vez em avião, e escrever minha tese de mestrado em transportes coletivos públicos.