sexta-feira, março 29, 2019

Acontecimentos paralelos (Ou: bateram meu carro e vim fazer prosa poética)


Tardes de sol em Boa Vista (Foto: Edgar Borges)

Alguém bateu o meu carro à uma e meia da tarde numa rua quase deserta, com um sol de quarenta graus atrapalhando a paz que todos deveríamos ter quando deixamos nossos filhos na escola.

Alguém bateu meu carro, estando o carro parado esperando outro carro acelerado passar na avenida à frente, palco de outros inúmeros acidentes leves e graves a perturbar a vida de quem só pensava em ir ou voltar para casa, para o trabalho.

Na mesma hora em que alguém bateu meu carro, uma mulher e um homem faziam amor em um quarto de motel na zona sul da cidade, desprezando as horas que tanto atrapalham quem só quer beijar, beijar e beijar como se não tivessem outros amores esperando por eles.

Quando desci do carro para conversar com a pessoa que bateu no meu carro, um homem velho subia em uma rede e se preparava para dormir em alguma comunidade indígena sem conexão com a internet para receber a foto das pessoas que estavam na esquina discutindo como seria solucionar o conserto do carro.

Quando tirei fotos dos carros parados no meio da rua, a mesma internet que levou as fotos para uma nuvem digital também ajudou o mocinho a sete quilômetros dali a pesquisar como ensinar facilmente regra de três à coleguinha que ele quer namorar.

Quando fiquei sem visão por conta de tanto sol que tem a uma e meia da tarde, quatro amigas olharam para o céu e pensaram em ir à praia, bronzeando-se antes que o inverno chegue e engula todas as areias.

Na mesma hora em que continuei meu rumo depois de ter anotado o telefone do sujeito que bateu o meu carro estando o meu carro parado, nessa mesma hora uma jovem conversava com o seu namorado e o questionava sobre a infantilidade do roteiro da série que haviam visto juntos ontem.

Quando comecei a escrever isto, dias havia se passado, oficinas haviam sido visitadas, panoramas de estresse haviam sido detalhados e desastres de todos os tipos haviam acontecido pelo mundo.

Quando o mundo todo passava por tudo isso acima e outras coisas mais, eu estava pensando: se eu tivesse virado à esquerda em vez de seguir reto, teria igualmente acontecido um acidente?

Enquanto digitava as últimas palavras, ouvi ao longe minha mulher me chamar para tomar um suco e tudo ficou mais alegre.


(P.S.: em 2013, voltando de uma viagem às serras do Uiramutã, tive um acidente de carro, novamente numa esquina. A história está aqui.)

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