segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Almoço zen



Na seção de poesias, a moça do balcão pergunta se o senhor vai querer comprar alguma produção. Desiludido, responde que está a fim de um pedaço de sonetos. Bota também umas gramas do haicai mais barato que houver, completa.

Ah, este mundo cão, onde a imagem não vale mais o que custava antes do reajuste governamental. Agora o preço subiu. Imagem real, tanto; real, porém manipulada, tanto a mais.

Nem o sexo é como antigamente. O bom senhor, cuja única religião foi sempre um corpo de mulher, apela agora para uma simpática boneca inflável e umas pílulas que lhe perturbam o coração, na avaliação insistente do médico da família.

Com a poesia na sacola de plástico, pensa na filha, fugitiva de amor, cruzando o estado às pressas para entocar-se nos braços de um escritor liberal e dândi, autor de crônicas imorais, verdadeiros atentados à família, aos bons costumes e à gramática. Melhor, sobra espaço na casa.

Será que não teria sido melhor comprar um pouco de concretismo e versos alexandrinos?

Talvez hoje saia para fumar um cigarro com os outros bons senhores da vizinhança. Nada muito exposto, que não convém. Depois, um cineminha, pipoca, refrigerante e gritos para que ninguém assista ao filme em paz.

Vai fazer um belo almoço. No cardápio, tem poética, metafísica e religiosidade. Para temperar, pitadas de infantil crueldade cotidiana. Pensa até em escrever à editora do cunhado e mandá-lo para o inferno. Mas hoje não. Hoje não tem sobremesa, só um drinque de muito cinismo e descaramento.

Parece que vai ser bom.

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