Semana passada saiu um novo texto de minha autoria no Blog dos Indígenas, espaço aberto a colaborações na Revista Fórum. O material fala de um caso antigo de massacre de índios na fronteira da Venezuela com a Colômbia. Foi inspirado a partir da descoberta de um clipe do grupo Campesinos Rap, que achei procurando artistas que misturassem joropo, ritmo tradicional de meu país nativo, com o hip hop.
Do clipe, fui pesquisar o caso. Demorei um pouco até achar as referências textuais que linco no texto: um artigo falando do caso Las Rubieras e um blog escrito pelo advogado de defesa dos acusados da chacina.
Depois disso veio a fase de criar coragem, muita coragem, para escrever. Entre a descoberta dos textos e a redação final, acho que se passaram uns dois meses...ando preguiçoso, né?
Lê o material e compartilha à vontade. Se você for indígena ou trabalha com os povos originários, manda seu texto, foto, filme, desenho, que a gente está querendo publicar.
Quando matar um índio não é algo mau: o caso Las Rubieras
O índio é um bicho preguiçoso, selvagem, sem cultura, sem o hábito de
economizar e acumular que tanto bem fazem ao sistema econômico
capitalista. Quer terras mas não sabe como produzir em larga escala. Só
atrapalha o progresso e a economia, que tanto precisa de suas terras
para desenvolver-se. Sendo assim, matar um indígena para garantir o
avanço da mineração, da agricultura e/ou da pecuária é totalmente
justificável. A razão estará sempre ao lado de quem atira ou manda
atirar.
O parágrafo anterior bem poderia ter sido direcionado aos indígenas
do Brasil, mas não sejamos exclusivistas. Eles têm parentes espalhados
por todos os cantos da América do Sul. Ou seja, se atrapalham aqui o
progresso, como não o fariam no Equador, na Colômbia, no Peru, na
Bolívia?
Para esses estorvos, vale desde 1492 a lei do aço. Se com celulares e
câmeras digitais os casos atuais de violência e conflitos são
registrados facilmente (veja neste link matérias do arquivo da Fórum para saber mais e vamos em frente), vale a pena
pensar sobre quantos casos houve sem serem anotados nos cadernos de
história.
Quantos mortes de indígenas nas mãos de capangas de fazendeiros
ficaram longe dos holofotes da justiça, da mídia? Difícil saber mas
sempre aparecem. Foi o caso de um massacre acontecido na fronteira da
Venezuela com a Colômbia nos anos 1960.
Donos de terras convidaram para uma festa um grupo de 18 indígenas da
etnia Cuiba. Enquanto estavam comendo, foram atacados com terçados e
facas. Os que tentaram fugir foram abatidos a tiros, fossem adultos ou
crianças. Somente dois conseguiram escapar, seriamente feridos. Os
corpos dos mortos foram queimados e misturados ao lixo e fezes dos
animais da fazenda Las Rubieras, onde aconteceu o massacre.
Talvez tudo tivesse ficado por isso mesmo se os dos Cuibas
sobreviventes não tivessem aparecido meses depois. O caso Las Rubieras
foi parar na justiça. Ao defender-se, os acusados alegaram que não
sabiam que matar índios era algo ruim, algo mau.
“Para nós, matar índios é como matar veados, pacas e capivaras, com a
diferença de que os veados, as pacas e as capivaras não nos fazem dano e
os índios sim”, declarou um dos acusados.
A defesa refletiu o contexto histórico da região. Desde 1870,
conforme conta o historiador Augusto J. Gómez L. em seu artigo ‘A guerra
de extermínio contra os grupos indígenas caçadores-coletores das
planícies orientais”, havia registros de massacre dos índios que, sem
terras e com a redução de animais silvestres para caça, abatiam gado dos
fazendeiros para poder comer.
Os casos de agressão eram tão comuns e naturalizados pela sociedade
que foram criados dois termos para identificar o tipo de violência
praticado: “guajibiada” designava o ato de procurar e matar grupos de
Cuibas e outras etnias da região. “Tojibiada” era a perseguição das
mulheres indígenas por homens a cavalo. Quando finalmente elas ficavam
cansadas, eram laçadas como gado, jogadas ao chão e estupradas.
Mais de um século de assassinatos em nome da defesa de seus
interesses haviam criado na população dos Llanos (planícies) a convicção
da normalidade destes atos. Como condenar alguém que agiu conforme os
hábitos da região? O artigo do professor Augusto Gómez é cheio de
relatos de outras mortes de índios, explicitando pactos mortais entre
fazendeiros e autoridades para, pelo uso da força, garantir o uso e a
ordem nas terras. Escrito em espanhol, o material pode ser baixado AQUI.
O caso Las Rubieras terminou com todos os acusados sendo absolvidos. A
história teve repercussão mundial à época, como pode ser conferido nos
textos publicados em 2012 em um blog por Jaime Rafael Pedraza, que atuou como advogado de defesa dos envolvidos.
Toda essa história resumida acima vai virar um filme na Venezuela.
Em 2013, o grupo de hip hop Campesinos Rap gravou um clipe com cenas do
longa, que deveria ter sido lançado ainda no ano passado.
O clipe apresenta cenas do futuro filme e a letra pode ser dividida
em duas partes: a primeira relata o massacre e o julgamento e serve para
protestar contra as inúmeras violências cometidas contra os povos
indígenas. A segunda atira contra os países que utilizam argumentos
antropológicos para oprimir e ocupar militar e economicamente outros
países.
Confira o clipe do grupo Campesinos Rap:
Para encerrar, o trecho final do artigo do professor e historiador
Augusto J. Gómez L., mostrando que se atualmente não há “guajibiadas” e
“tojibiadas”, a situação dos Cuibas não melhorou:
Hoje, os últimos redutos indígenas estão confinados nos rincões
das vastas planícies, fugindo dos enfrentamentos armados que, com
crescentes intensidade, vêm acontecendo na região nas últimas décadas
entre a guerrilha, o exército, os paramilitares e o narcotráfico. Outro
grande número de famílias indígenas migrou para os centros urbanos. Lá,
deprimidos, humilhados, prostituídos e alcoolizados, concluem sua
agonia, depois de mais de um século de perseguição sistemática por
aqueles que se chamam “civilizados” mas não demonstram sê-lo.
Edgar Borges, escritor, jornalista, ativista cultural, venezuelano, descendente da etnia Wapichana. Blog pessoal e Twitter.
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